O fundo dos olhos continuavam
vermelhos desde a última noite que passara. O frio não era gentil, e não seria
nunca, muito menos quando precisasse de gentileza. O fundo dos olhos, e as bolsas
em volta deles eram vermelhos, vermelhos como o que o pegou na noite
anterior. Vestia uma blusa com capuz da sua banda favorita e o mesmo e velho
par de tênis de sempre, com cadarços que sobravam exageradamente no laço.
Vermelhos e surrados. Como seus olhos. Como o que quase lhe matou.
Estava
sentado, com as pernas cruzadas nos degraus de uma velha igreja perto de sua
casa. Nunca foi religioso, mas buscava algumas respostas, e ponderou sobre
entrar no lugar que lhe diziam ser sagrado para encontrá-las. Sua vontade não
passou, mas abrandou-se com o passar dos minutos. Tudo o que lhe havia
acontecido, não teria explicação no divino, teria explicação apenas no mundano.
O mundano que ele provocou a si mesmo. Deixou de lado aquele pensamento, acendeu
um cigarro e tomou um trago. A fumaça o invadira, e tomara para si o pulmão
pouco acostumado, ainda era jovem, mas tinha se convencido de que o fumo seria
seu novo melhor amigo para momentos como aquele. Os melhores piores momentos
que passara. Seu corpo já havia rejeitado outros corpos, veneno, bebida,
insultos (ficaria surpreso como um soco lhe poderia ser útil a qualquer hora
dessas), mas não poderia rejeitar agora o tabaco mentolado que o deixava são. O destruiria por dentro, sim, mas o mantinha com as sanidades no lugar.
O corpo se provara só mais um dos inimigos e passou a rejeitar o mal que
tragava enquanto via os carros passando. Com a tosse seca podia ver
sangue. Era seu sangue.
O sangue o
havia abandonado na noite anterior num momento de cruel importância, já havia deixado seu corpo horas antes, numa quantidade considerável, lavando o
chão do banheiro onde estava, perdido, com seus pulmões a ponto
de saírem pela boca. Deixou o lugar uma bagunça quando as sirenes e os homens
chegaram para constatar o que havia ali acontecido.
Passou uma
noite com todas as luzes acesas e olhos de curiosos acima de si, curiosos, e com
aqueles que seriam pagos para se preocupar com a sua saúde, com o ato de
insanidade que cometera naquela noite, que quase pagara com a vida. Agora, estava sentado nos degraus de
mármore frios, e com nada além do céu lhe observando. Aquele céu, o céu que
estava nublado naquela noite ainda parecia mais limpo que sua consciência já
estivera algum dia. Fazia tanto tempo que não sentia mais e não lembrava mais
como era se sentir limpo.
Um estranho
conhecido estava passando e cruzou seus olhos com os olhos vermelhos,
inchados e cansados. Ao invés de continuar sua caminhada, parou e pediu por
fogo. Deu-lhe seu único isqueiro e começaram a falar sobre como o tempo havia
mudado tão rapidamente naquele fim de outono.
— Ficou frio de repente. Não esperava por essa geada tão
cedo. — Deu um trago, e continuou observando a vida passando à sua
frente.
— É, acho que ninguém esperava por isso. — respondi.
— Esse frio parece ter vindo para fazer o melhor dos homens se esconder
em casa, sem cogitar a ideia de sair nem pra uma cerveja com os amigos.
— Não culpe o frio. Ele não deveria ser um problema. Os amigos não são
mais o mesmos e com certeza o melhor dos homens não é mais tão bom
assim. — estava começando a ficar impaciente. Aquele homem não ia embora
logo e eu gostaria de continuar sozinho, contemplando fosse o que a noite me
trouxesse.
— Parece um soco no estômago ou um arrepio na espinha para todos à essa altura. Não me lembro de você ter sido tão amargo, pareceu-me
bem há poucos meses. — disse sem graça, já parecia ter percebido que não o
queria ali.
— Noite difícil. — respondi, seco, esperando que fosse embora de
uma vez.
— Você ainda veste as cores do luto.
— Sempre foram as minhas cores.
— Te falta algo e, se quer saber, nem sempre foram. Você não as veste mais. Elas vestem
você.
— Preto é a minha cor. Estou vasto, seja lá do que for, e já me
acostumei. — fechei meus olhos e percebi que meu cigarro já estava
no fim. Minhas mãos estavam frias, e tremiam enquanto seguravam o filtro, sem
deixar que o vento apagasse a brasa. Me contive para não mandá-lo embora ou
afundar aquela ponta de fumo no meio de sua testa. Era intrometido e aquelas
eram coisas que eu não queria ouvir. Não naquela noite. Não de um estranho.
O homem percebeu que não conseguiria nada com aquela conversa, se
levantou e pôs-se a andar, e antes que começasse a se afastar demais disse com
um sorriso no canto dos lábios: — Encontre-a. E continuou caminhando.
Aquelas
palavras soaram como o tal soco no estômago e o arrepio na espinha do qual o
velho estava falando há poucos minutos atrás. O frio não lhe causava
estranheza, muito menos as roupas que decidira vestir. O que aconteceu lhe
causava sensações que ele não poderia nomear. Não fora como nas outras vezes e
não era gentil como o frio não seria no próximo inverno.
Você não as
veste. Elas vestem você. Aquelas
seriam suas cores enquanto estivesse vivo, enquanto acreditasse ferozmente
nisso. Estava se recuperando não sabia bem do quê, mas sabia que não as
deixaria de lado tão facilmente. Sabia que fora atingido com algo que possuía
suas cores. As cores dos olhos, o vermelho do chão naquela noite.
Estava se
perguntando por que ainda estava ali e qual seria o seu propósito a partir
daquele momento. Encontre-a.
Sabia sobre o que se tratava, sobre quem falava. Sabia que deveria
encontrar o que estava perdido. Sabia que as respostas não estavam no sagrado,
ou no fugir para outro lugar. Não estavam no mudar de roupas, ou no vestir
cores que não fossem suas. Sabia que as respostas não estavam em nenhum outro
lugar senão dentro de si. Aquele encontro com o desconhecido acabara de mudar
o rumo do que seria sua vida em pouco tempo. O encontro casual com o
desconhecido o mudara, enquanto um outro encontro desses acontecia do outro
lado da cidade mudando o rumo da vida de quem deveria encontrar.
Sabia o
nome. Sabia por onde começar. Esperava não ser tarde.
Mas o mundo
é cheio de encontros casuais e repleto de desconhecidos prontos
pra mudar o rumo da vida de qualquer um.