sábado, 28 de junho de 2014

S.N.S.A.H

Chegou em casa, largou as chaves em cima da mesa e foi deixando peças de roupa pelos cômodos a medida que passava por eles. Primeiro pela sala, ligando a tevê e deixando os sapatos e as calças. Pelo corredor largou a jaqueta e o colete militar, presente do irmão que há muito não via. Quando chegou na cozinha, tirou a camiseta e soltou os cabelos. Era uma noite realmente quente, por mais que o mês em que estivesse fosse Junho, e a cidade onde morava fosse São Paulo.
Gostava de pouca roupa. Em si, e em quem costumava passar algumas noites pelo apartamento. Ficavam pra um café, ou um conhaque quando caia o tempo e o mundo lá fora, acabavam ficando o resto da noite, quase sem notar a baixa temperatura nas ruas. Afinal, acho que não fazia muito frio embaixo do edredom dela.
Nem sempre era a mesma, os nomes que entravam e saiam pela porta agora eram somente um, em muitas faces. E ela nem sempre se lembrava de muito além disso. Tinha um casamento consigo mesma, e uma regra básica de convivência para fazer essa relação durar: não deixar que qualquer outra relação durasse muito mais que algumas horas. Era assim desde quando já nem se lembrava mais, e nem fazia muita questão de lembrar. Era dessas de fugir de conflitos pessoais, mas incapaz de fugir o olhar a uma bela chave de pernas de mulher. Perna de mulher, podia não se render a muitas coisas, mas essa era uma das coisas da qual não conseguia escapar. Só não conseguia. Não conseguia fugir, e muito menos se policiar a não aceitar de bom grado quando um desses pares vinha com tanta sede ao seu encontro.
Ela podia não valer o que bebia, o que fumava, o que usavam, mas os encontrões nos corredores, as pernas de mulher, o suor descendo pelas têmporas e os lençóis amanhecidos e deixados sempre desarrumados faziam valer o que escrevia. E escrevia como aquele que lhe deu a máquina de escrever no seu aniversário de dezoito anos. Escrevia na máquina com manchas de vinho e a tinta falhada que nunca acabava, com queimaduras de cigarro e o nome "Olivetti" apagado pelo tempo. Aquela máquina já escrevia histórias antes mesmo de nascer, pensou.
Ela amava seu avô. Amava sua mãe, crescera independente por influência dela, mas o velho sempre a fascinava com suas histórias. Prestava tão pouco quanto. Traiu, bebeu e fumou a vida toda, mas nunca deixava uma história pela metade. Escreveu sem roteiro uma vida da qual não se arrependia, e não se arrependeu nem no minuto do último suspiro. Ela dava seguimento, em outro tempo, ao legado e responsabilidade que era ter consigo um instrumento tão velho quanto seus dedos podiam contar. Alguns hábitos realmente não mudam, pensou, o velho estava certo. Ele a tratou como o neto que nunca teve, e ela não se incomodava com isso. Era realmente bonito ver a forma como ele a olhava sem preconceitos, como suas histórias seriam contadas exatamente do mesmo jeito que seriam caso tivesse nascido um menino. Em outra vida, quem sabe.
Gostava de ter algumas noites livres em casa para dar vida ao hobby, sentava na sacada e se encostava na parede do apartamento ao lado. Que não fizesse isso quando estivesse bêbada, nunca, caso resolvesse fazer, que tivesse a consciência de que a queda não a permitiria mais escrever histórias como o velho, ou sentir o toque de alguma delas em uma noite fria. Quando encostava dava alguns tragos antes de começar, e alguns quando terminasse. Era seu incentivo, e por vezes, pensava ser esse seu propósito em noites como aquela.

Acredito ser necessário citar que ela leva uma cicatriz em formato de lua minguante no lado direito da nuca. Quase não dá pra ver, mas a cicatriz está lá desde que se entende por gente. Digo isso porque há um detalhe particularmente peculiar sobre ela: Ela sofre de uma doença genética. Ou melhor dizendo, não sofre. Porque não pode sentir. Tecnicamente falando, é algo chamado Síndrome da Neuropatia Sensitiva Autonômica Hereditária. O velho também a tinha, e ela gostava de pensar que essa era uma das razões para se parecerem tanto.
Voltando a história da cicatriz, bom, seu irmão costumava brincar com fogo quando eram pequenos. Num dia, enquanto estava distraída vendo desenhos, ele a surpreendeu com um anel partido ao meio, era uma velharia, bijuteria de alguém da casa, derretido. Com o susto, ela se virou precipitadamente e não houve tempo dele se afastar. Ela não gritou, não chorou. Não sentiu que estava sendo queimada com o pedaço de cobre derretido. Foi quando percebeu que era imune a dor. Acabara de ganhar uma cicatriz para se lembrar disso para o resto da vida.
E bom, ela era imune a sua dor, mas não aos ferimentos. Na adolescência costumava andar com um canivete, fazendo cortes aleatórios pelo corpo. Gostava de sangrar sabendo que daquilo não sentiria nada. Poderia sangrar até a morte, se quisesse.
Não quis, não quis por bastante tempo. Era invencível, sonhava, e não se importava com quaisquer consequência que seus impulsos lhe causassem depois. Os cortes, os arranhões dos gatos que teve, as unhas das mulheres com quem passava as noites, os tombos... Nada, todas aquelas marcas não eram nada. Estavam lá, mas ela não as sentia sendo feitas, nem depois, nem nunca.

Ela costumava manter suas relações na superfície, algo relativamente estranho de se fazer, quando se é alguém gosta de cortes fundos. Quando se gosta mais do estrago do que da recuperação.
É fácil, sim, porque eu não sinto. Pensava com frequência, já que era a única que aprendera a reconhecer suas mentiras. Engano os outros, não a mim. Pensava, pensava querendo se livrar do pensamento. Querendo se livrar do peso do qual foi refém a vida toda. Não reconhecia a dor física, e por não conhecê-la, pensava que não poderia ser fraca e sentir internamente seus conflitos. Por que sempre enxergou o mesmo rosto em todas elas depois de uma foda memorável? O rosto desconhecido já lhe tirava boas horas de sono mesmo. Por que não lembrava dos nomes, e depois disso, não lembrava muito mais das curvas em que passeou na noite anterior? Escrevia para se lembrar, e sabia disso. Escrevia para saber que aquilo não passava de um delírio, ou era o contrário? Era o delírio destinado ser só aquilo que era, momentâneo? Um delírio no meio do esquecimento diário, ou da nunca conhecida dor. Escrevia para saber que sentia em algum lugar.
Escrevia os nomes em pedaços de papel que ficavam jogados pela casa até a visita da diarista há cada duas semanas.

Não sentiu quando a cicatriz em forma de lua foi feita e não sentia muito bem a mudança de temperatura de onde estava, mas sentia as veias pulsando. Sentia o coração bombeando o sangue que corria. Sentia até alguns de seus vasos estourarem, romperem-se e se reconstituírem com o passar das horas.
Não sentia muito por passar as noites entre pernas, cabelos, olhos e furacões. Sentia um vazio alimentando-se de tudo o que ainda tinha, como na história sem fim, estava fadada como seu herói a ser consumida pelo nada? Até não sobrar. Nada.
Estava fadada a queimar, pulsar, gozar, cortar,
arranhar, bater, quebrar, torcer, foder, cair,
(se deixar) levar,
Até não sobrar.
Mais.
Nada.